A Geografia e a Cozinha: uma simbiose perfeita!

O testemunho de João Oliveira que voltou este ano letivo para concluir a licenciatura no DGPR. Embarcou na experiência do Erasmus, em Aberdeen, Escócia e acabou por não voltar tão depressa a Portugal. Depois de uma “noite de copos”, começou a sua aventura na cozinha. Para ele, a Geografia e a Cozinha, são uma simbiose perfeita!

 

Da Geografia para a cozinha. Como aconteceu esta mudança no seu percurso?

João de Oliveira: Foi uma evolução natural, aliás acho que as duas se completam, tal é que retomei o curso de Geografia e Planeamento na Universidade Nova de Lisboa. A cozinha, bem como todas as nossas tradições e costumes enquanto povo estão diretamente relacionados com o clima, relevo, fauna, flora, migrações, com a história e a evolução de cada região. E isso sempre despertou o meu interesse e me fascinou. Perceber e entender porque é que no Norte se consome um tipo de produtos, se vive de uma forma e as rotinas do dia a dia são diferentes das do Sul ou dos arquipélagos do Atlântico. Mais importante do que decorar onde se come o quê, que tipo de música se toca e ouve, bem como os costumes de cada povo, é perceber as suas origens, o porquê de os ter. Se quisermos verdadeiramente perceber a gastronomia temos de perceber o que a rodeia, onde está inserida, a sua história, e isso é também Geografia. Por isso, não o vejo como uma mudança, mas sim duas áreas que se completam; a gastronomia leva-nos à geografia e vice-versa.

Foi em Aberdeen que se deu os primeiros passos na restauração. Primeiro no serviço de sala, depois na cozinha. Como se deu essa transição e o que o fez apaixonar-se pela cozinha?

 A transição dá-se depois de uma noite de copos num casino, e pela necessidade de dinheiro (risos). Foi uma mudança aos poucos, passou por várias etapas, mas penso que era o destino. Quando cheguei a Aberdeen, tive alguns problemas burocráticos com o meu alojamento e de integração naquele mundo académico completamente diferente do nosso. Eu pensava que “só ia fazer ERASMUS”, mas logo na primeira apresentação percebi que ia ser diferente. E depois com a libra caríssima, as festas eram muitas e tinha entrado para a equipa de Lacrosse, o que nos levava a percorrer a Escócia quase todos os fins de semana… basicamente todo o dinheiro que levava comigo desapareceu em dois meses. Percebi, então, que teria de fazer como em Portugal: estudar e trabalhar ao mesmo tempo.  Numa hora de almoço, igual a tantas outras, na ida para a uma das cantinas da Universidade de Aberdeen, vi uma pequena bandeira de Portugal e lançámos uma pedra e tivemos resposta. Uma semana depois, descobri que um restaurante italiano – o Ciao Napoli – , estava a precisar de um empregado de mesa. Como estava a precisar de dinheiro, candidatei-me e acabei por ali ficar três anos e meio. Cresci muito ali, a todos os níveis, eram a minha família e era a minha casa, onde me sentia bem. Mais tarde, em fevereiro de 2009, numa outra noite de casino, depois de uma conversa com um amigo meu, às 9h estava numa nova entrevista de emprego. Uma hora mais tarde, estava já a trabalhar e, durante duas semanas, ainda acumulei os dois trabalhos. Durante o dia, estava na cozinha do Olive Tree e, à noite, como chefe de sala no Ciao Napoli. Optei pela cozinha, era a minha paixão desde pequeno. Nesta altura, já tinha parado o curso e estava inteiramente dedicado à restauração.

Em 2011, regressou a Portugal. Quais os maiores desafios nesse regresso ao país depois da sua experiência no Reino Unido?

O meu primeiro desafio foi a readaptação a Portugal, a nível pessoal e profissional. Tinha perdido o contacto com muitos amigos, outros já nem moravam em Lisboa e eu próprio fui diretamente de Aberdeen para a Parede, onde não conhecia ninguém, só a minha mulher e a família. A nível profissional foi ainda mais complicado, não conhecia ninguém e nem sabia bem por onde começar. Em Aberdeen, conhecia toda a gente, por causa da formação, das salas e cozinhas onde tinha trabalhado e pelas competições todas onde tinha participado.  Lembro-me perfeitamente de não “conseguir” dizer muitos dos nomes em português, coisas simples do jargão profissional, como serviço, pedido, tábua, taça…entrava na cozinha e tudo me saía em inglês, até o simples bom dia!  Vivia-se e respirava-se a cozinha de outra maneira na Escócia, e não falo em exclusivo de grandes restaurantes, quer pelos profissionais da restauração, quer pelo cidadão comum. Em 2011, os cozinheiros ainda não eram as “estrelas de rock” que são hoje em Portugal. Lembro-me de um amigo, entre outros, que me viam como o “cozinheiro, o tipo da cantina” e mais tarde me veio pedir um estágio para a filha que estava a tirar o curso de cozinheira. Muito mudou desde 2011, com os programas de televisão (nem tudo para melhor), mas a nível de imagem da nossa profissão, penso que conseguimos mudar a cabeça dessas pessoas. Cabe-nos a todos nós, profissionais, alunos das escolas e futuras gerações de cozinheiros mantê-la e melhorá-la cada dia, quer estejam a trabalhar, quer como simples cidadãos na sua vida diária. 

É reconhecido pela sua abordagem holística à cozinha. Fale-nos um pouco das suas características enquanto chef e quais as suas principais influências.

É a abordagem que tento ter na minha vida pessoal e que se mistura com a profissional a toda a hora. Não podes observar e viver separando os diversos papéis que se desenrolam na vida e na sociedade: sou pai, companheiro, amigo, cozinheiro… e desempenho esses papéis todos ao mesmo tempo. Tens de perceber o teu passado e as tuas raízes e ter objetivos e metas a alcançar e fazer esse caminho que, na verdade, é o mais importante. Estes podem mudar ao longo da vida, mas se perceberes e viveres o que te rodeia como um todo esse caminho, é maravilhoso e traz-te significado e isso é, para mim, o verdadeiro viver; integrado e interagindo com os mundos que te rodeiam. E o mesmo aplico na cozinha. Tens de ter a sensibilidade para perceber de onde vêm os produtos, quem os vai trabalhar e a quem os vais servir, que tipo de clientes tens à tua mesa, onde está inserido o teu restaurante. E é aqui que, mais uma vez, entra a Geografia e este casamento entre a cozinha e a geografia. Aplico mais tempo neste processo, na maior parte dos casos, do que a preparar uma receita em si e a fazer experiências. Porque, na verdade, este processo também faz parte da criação de uma receita ou de um menu. Por outro lado, tens de perceber em que equipa estás (desde o copeiro ao proprietário do espaço), quem te rodeia, não cozinhas sozinho, apesar de muitos “chefs” e clientes pensarem que sim. Cada pessoa, cada indivíduo tem uma história, um passado e um presente, tem sonhos e objetivos e se pensares na equipa como um todo, todos crescem, o teu restaurante cresce e tu também. Se separas cada indivíduo, como uma ilha, numa secção, no seu canto e zona de conforto e não os desafias, tu próprio te transformas numa ilha rodeado de um oceano imenso. E, infelizmente, as pessoas não querem olhar para a pessoa do lado e dar a mão, aprender. É mais fácil ir ao encontro de pessoas que nunca vimos procurar essa aprendizagem, talvez por falta de humildade e por pensarem que apelar para a ajuda do colega ou outro colaborador da mesma empresa é um sinal de fraqueza.  Respondendo a segunda parte da sua pergunta, as minhas influências dividem se muito e são fruto também de tudo o que já vivi, viajei e por onde já trabalhei. Conheci muitos cantinhos de Portugal, principalmente até 2005, quando fui para Aberdeen. Viajava constantemente para Espanha e, mais tarde, para outras paragens. Quando fui para a Escócia, por exemplo, para além de viajar muitos nos tempos livres por lá, fazia road trips à procura do melhor Cheesecake de Aberdeen ao Lock Ness, por exemplo, todos os anos íamos fazer uma tour com a equipa de Lacrosse pela Europa de Leste. Fruto disto tudo, posso mencionar algumas dessas influências, sem com isso dar maior destaque a qualquer uma delas. Mas, a título de exemplo, o uso das especiarias que me despertou o bichinho quando trabalhei com muitos colegas do Nepal, aos tempos e férias vividos quer na aldeia, Vasconha, terra dos meus avós paternos na Beira Alta, bem como em Estremoz, do outro lado da família, a ligação direta que sempre tive com Espanha, às pescarias, a pequena caça e apanha de cogumelos na Escócia…são muitas e isso acho que vê em cada prato que crio. Tudo e todas se ligam e é difícil separá-las.  

Está há dez anos em Portugal e já passou pelos mais diversos espaços. Hoje, dedica-se à consultoria. Em que se foca o seu trabalho?

Primeiro de tudo, passa muito por transmitir todo o meu conhecimento e experiência para outros cozinheiros e empresas, quer o já adquirido, quer tudo o que vou aprendendo todos os dias. O meu trabalho de consultoria baseia-se principalmente na otimização e gestão de processos, o que possibilita uma otimização de custos, de equipas, melhor ambiente de trabalho, aumento de qualidade de vida e de serviço, bem como, um maior rendimento com controlo de custos rigoroso e reduzindo o desperdício ao máximo, onde tudo o que pode ser aproveitado e usado assim o é. e com razão de o ser, não de usar só para mostrar e fica bonito e colocar um autocolante na porta no meio de outros 20 ou 30. Por outro lado, há uma abordagem ou aproximação a “novos produtos”, que muitas vezes não são novos, são locais e fazem parte da história daquela região e daquelas pessoas, mas que se perderam nas cozinhas com esta onda de “restaurante de fusão” ou simplesmente por falta de conhecimento. Outro dos serviços que a “João de Oliveira” presta é o desenvolvimento de receitas, criação de menus e do próprio espaço, desde o material de cozinha ao garfo e faca usado na sala, e isto pode ser aplicado a qualquer espaço, esteja ele já a funcionar, queira melhorar a oferta ou simplesmente criar um prato que seja a imagem que o distingue de todos os outros. Formação de equipas e a sua constante evolução e crescimento.

Quais os seus projetos para os próximos tempos e quais os maiores desejos. 

O maior desejo neste momento é que nos deixem trabalhar. Para além de jantares para grupos e famílias e serviços de catering para particulares ou empresas, o maior projeto já tem as suas bases criadas e bem cimentadas, sabendo que será um projeto em constante evolução, e até de adaptação a cada cliente, mas é sem dúvida a consultoria, a representação de marcas, e até a criação e desenvolvimento de produtos com as mesmas. Como qualquer pessoa e profissional, independentemente da área em que trabalhas, tenho outros projetos e desafios que se vão alterando e modificando constantemente. É normal que assim seja, nenhum de nós é a mesma pessoa e tem os mesmo objetivos e sonhos, exatamente como tinha há dez ou vinte anos. O importante é fazeres o teu caminho, não ter medo de arriscar e de acreditares que consegues. E, claro, concluir a licenciatura!

Foto e texto: João Oliveira