“Acredito e defendo que, num futuro imediato e não imediato, a Geografia tenderá a ser valorizada”

Licenciado em Geografia e Planeamento Regional, em 1988, Mestre em Gestão do Território, em 1997, e Doutorado em Geografia-Economia e Sociedades, em 2003, José Lúcio é professor auxiliar na NOVA FCSH, lecionando unidades curriculares como Geoeconomia e Geopolítica. 

Geolearning (GL) – A licenciatura de Geografia e Planeamento Regional tem registado algumas mudanças ao longo dos anos. Como descreve esta evolução e a que razões atribui a estas transformações?

Professor Lúcio (PL) –  A nível deste curso, temos de fazer uma divisão importante: a  reforma de Bolonha, que determinou que as licenciaturas passassem a três anos, o que, consequentemente, teve um impacto significativo na redefinição dos conteúdos das unidades curriculares obrigatórias e opcionais. 

Por outro lado, em termos internos, esta licenciatura já teve algumas reformas com algum significado. Se forem ver os conteúdos programáticos da licenciatura nos princípio dos anos 90, iriam encontrar diferenças importantes, não só justificadas por Bolonha, mas também resultantes da mudança de tempos, e pela interpretação que se foi fazendo de que as licenciaturas têm de se adaptar aos mesmos. Falando de um caso concreto, que me diz respeito a mim, por exemplo, a cadeira que se dava há algum tempo no domínio da economia, chamava-se “Introdução à Economia”, e agora chama-se, como sabem, “Geoeconomia”. Existem conteúdos que vão sendo bem alterados e que explicam que no fundo, porquê que as estruturas curriculares das licenciaturas não são estáticas, vão evoluindo ao longo do tempo e acabam por refletir a leitura que se vai fazendo das grandes questões e dos avanços de uma ciência concreta que, neste caso, é a geografia.  Isso acho que é importante mencionar. Até porque reparem, a licenciatura de geografia não é externa ao que se passa. Hoje em dia, temos quatro semestres de opções obrigatórias e depois dois de opções livres. No seio destas últimas, é um bocado fácil conseguir construir o curriculum de acordo com aquelas que são as perspetivas e ambições que se têm para o futuro. Neste sentido, as sucessivas estruturas curriculares da licenciatura de GPR traduzem, de facto, também, o andamento das grandes preocupações que as sociedades vão tendo. 

Em geral, a sociedade e o mundo estão, mais do que nunca, em constante mudança. Esta transformação é cada vez mais rápida e complexa. Em termos de grandes alinhamentos, quais considera ser aqueles nos quais a sociedade e, consecutivamente, o departamento de GPR se estão a colocar?

Essa é uma excelente pergunta, a vários níveis. Primeiro, há a questão do ponto da situação dos debates numa disciplina. Ou seja, o quê que a dada altura parece ser mais apelativo; o que parece estar, digamos, num ponto de grande interesse de debate intelectual, numa disciplina científica. Isso é um ponto. Em segundo, quais são as necessidades e exigências do mercado de trabalho atual. No fundo, o quê que as instituições públicas, privadas e cooperativas a dada altura precisam e têm necessidade, em termos técnico científicos numa determinada área disciplinar (neste caso a geografia). E, portanto quando, uma universidade forma jovens licenciados numa determinada área, tem sempre em conta o quê que os empregadores andam à procura; que competências é que valorizam a determinada altura; que tipo de respostas é que procuram que uma determinada universidade, num determinado momento, seja capaz de oferecer/colaborar. 

Na primeira parte, no domínio da ciência, questões ligadas à climatologia, por causa das alterações climáticas e não só; questões ligadas aos riscos, que se fala cada vez mais, por exemplo com as inundações na Austrália. Depois as questões ligadas ao desenvolvimento, de certeza, nem que seja pela crescente tomada de consciência das desigualdades territoriais – rendimento, meios urbanos-rurais, etc, é sempre importante; bem como as questões relacionadas com a União Europeia –  não podemos fugir a isso. O caminho que vamos e não seguir, que trajetos serão, eventualmente, possíveis em termos de integração europeia; tudo isso coloca questões importantes para a reflexão de natureza académica. Relativamente às questões de empregabilidade, aí acho que temos de estar conscientes de que tudo o que tenha a ver com Sistemas de Informação Geográfica, informações de satélite, entre outros, pressuponho que, no futuro, sejam grandes fontes de emprego. Vocês, tal como eu sabem que, neste momento, as questões relacionadas com o 5G estão a gerar grande polémica, porque isso depois envolve questões extremamente sensíveis, que estão ligadas à segurança nacional e isso são elementos muito importantes. 

Também se percebe que, evidentemente, com formações académicas mais curtas, é perfeitamente possível que haja também uma certa plasticidade. Ou seja, não significa que alguém que faça uma licenciatura em Geografia e Planeamento Regional vá, necessariamente, exercer uma atividade profissional que requer competências que estão muito dentro daquilo que é o quadro de competências desta licenciatura. Hoje em dia, a adaptabilidade é um valor. Por isso é que vocês sabem que, há pessoas que podem ter feito esta licenciatura e trabalham em áreas que pensaríamos que não seria possível. E depois há também uma questão mais institucional que se deve ter em conta, que é o aumento do próprio feito concorrencial entre diferentes instituições do ensino superior, que oferecem produtos diversificados, na luta pela conquista de alunos. O mercado universitário é fortemente concorrencial. Há um primeiro momento com as entrada nas licenciaturas e depois que é, talvez, onde se joga muito com a capacidade de ganhar influência no ponto de vista das estruturas de decisão nacionais, por exemplo a questão dos mestrados e dos doutoramentos. Porque reparem, quando se entra a nível de mestrado, é evidente que a ideia é tentar atrair os melhores que se formaram nas instituições de ensino superior. E aí o mercado é ainda mais concorrencial. Há um número muito elevado de jovens que se vão formando e isso constitui um núcleo vasto e diversificado de potenciais interessados em pós-graduações, mestrados e doutoramentos. Isso é uma questão que temos também de pensar: que as universidades que estão neste momento num mercado fortemente concorrencial têm também de estar atentas, do ponto de vista da formação pós graduada, não só às necessidades do mercado de trabalho de emprego, mas também – e isso é mais evidente num país como o nosso, com menos recursos – para onde estão a ir os apoios públicos, neste momento. Que prioridades é que existem hoje na grande área das ciências sociais?! As universidades não podem ser cegas a isso, e vão-se posicionando. É que não se esqueçam que os fundos para a investigação são muito escassos e estamos a falar de dezenas de centros, que têm de perceber como se podem integrar favoravelmente no quadro de orientação política nacional e europeia. Porque isto está tudo ligado a decisões políticas; a atribuição de fundos é uma decisão política. 

Quais pensa serem as características mais relevantes de um futuro geógrafo; de um aluno que está agora a terminar o seu percurso académico em geografia? Que aptidões deve possuir e que desafios lhe vão surgir? Ou seja, uma pessoa que se está a preparar para o mercado de trabalho, o que deve ter em conta?

Em primeiro lugar, não pode ser um atrapalhado. Ou seja, se lhe colocam à frente um desafio não pode paralisar. Depois, tem de ter uma consciência muito aberta acerca dos desafios que lhe colocam. Isto é, se não sabe exatamente aquilo que lhe estão a pedir deve informar-se e pedir a colaboração de quem sabe. Depois, mais concretamente na área da geografia, eu reitero que ser multifacetado vai ser uma característica importante. E, no fundo, na minha opinião, e isto não é especificamente para a área de geografia, penso que é para aqui também que apontam para as ditas opções livres. Isto porque podem satisfazer a mais que saudável curiosidade intelectual de alguém, ao mesmo tempo que permitem que um estudante possa ganhar aquele mínimo de conhecimentos em determinadas áreas fora do núcleo mais duro do conhecimento de uma ciência, possibilitam-lhe navegar com alguma segurança em áreas profissionais que não estejam diretamente na continuidade dos conhecimentos que se adquiriram na licenciatura. E eu aqui, no que concerne à geografia, creio que neste momento é inquestionável dominar algumas técnicas quantitativas, por exemplo estatística; ter um domínio bastante aceitável nas áreas ligadas aos SIG (a informação de satélite, as comunicação dos 5G, etc); também nas áreas ligadas à climatologia e aos riscos que penso, como disse há pouco, vão ter de facto, crescente importância. Para além disto, e esta é uma questão que nunca está fechada, as desigualdades. Até porque reparem, devem estar atentos a isso, há todo um discurso político que puxa estes assuntos. Quando o atual presidente norte americano foi eleito, esta questão veio muito ao de cima: as desigualdades da sociedade norte americana e o facto de o discurso político do Trump ter ganho aceitação em determinadas camadas sociais territorialmente localizadas. E aqui é que acho que a geografia pode dar respostas interessantes, a que outras ciências não tocam, como a sociologia e a economia. É que às vezes esquecemo-nos que estes fenómenos têm, geral e tendencialmente, uma expressão espacial; não são exógenos em relação aos territórios. E este caso, em relação ao presidente Trump, esta eleição revelou que existem territórios nos EUA –  país muito desenvolvido – que por não acompanharem o andamento da economia global, foram varridos do grande andamento da prosperidade. E o discurso do Trump entrou nesse eleitorado, que é isso que é capaz de ser interessante pensar. 

Outro caso bastante sensível e interessante é o da Palestina. A Palestina é um fenómeno espacialmente localizado, mas a verdade é que 40 ou 50 anos de guerras e protestos o que conseguiram exatamente? Nada! A Palestina continua a não ter um Estado, as pessoas podem sair para  a rua, podem protestar, podem gritar “Morte a Israel”, mas continua a não ter um Estado. E é aqui que se vê que a geografia é realmente importante. A economia pode dizer-me quanto, em média, mais pobres estão os palestinianos em relação aos israelitas; a sociologia pode dizer-nos quais são as características dos grupos de palestinianos que estão em situações precárias, mas a geografia diz-nos, de facto, onde estão esses indivíduos exatamente. E, por vezes, eu creio que existe uma leitura não geográfica dos factos, como se realmente não existissem as variáveis distância e espaço. 

Isto tem um pouco a ver com aquela visão de que, com o desenvolvimento das tecnologias de comunicação e informação, o espaço deixaria de ter importância. E eu contesto completamente essa visão. Até tenho ideia de que, numa situação como esta da Palestina, a geografia poderia, por acaso, investir mais, do ponto de vista de ciência: explicar onde estão, e porquê que estão ali e não noutro sítio, por exemplo. Ainda que eu acredite e defenda que, num futuro imediato e não imediato, a geografia tenderá a ser valorizada. Até porque eu acredito que existam fenómenos de natureza política que vão puxar muito às características territoriais, como por exemplo, a questão da Catalunha ou da Irlanda do Norte. Não são só questões sociopolíticas, são questões territoriais, e eu aí acho que a geografia tem algum futuro. 

Os territórios são o ponto fulcral da ciência geográfica e, portanto, são o objeto de estudo primordial de todas as unidades curriculares da licenciatura de GPR. Se tivesse de o fazer, e tendo em conta o caráter utópico da situação, como descreveria um território ideal?

É uma questão um pouco complicada, porque um território ideal tem tantas variáveis para ser ideal que é difícil responder. Em primeiro lugar, se me perguntassem o quê que era um território ideal em termos de recursos, deveria ser um território com muito cobre, muito lítio, com condições agrícolas excecionais para produzir bens altamente valorizados do ponto de vista do mercado internacional. Por outro lado, se me perguntarem em termos de localização, acho que deveria estar junto ao mar e, se possível, afastá-lo de tudo o que são áreas potencialmente conflituosas e de áreas com variabilidade climática muito extrema. O território ideal é muito difícil de definir porque, se fizessem essa pergunta a cem pessoas todas elas lhe iam responder de maneira diferente, de acordo com aquilo que mais valorizavam. Isto depende muito da localização de cada um e daquilo que a pessoa valoriza mais do ponto de vista do que é importante, o que também reforça a importância da variável geográfica. As pessoas valorizam aquilo que acham que é ideal, tendo em conta o que têm à porta de casa. 

Dois livros que recomenda…

Em primeiro, diria, de imediato, Porquê que a Geografia Conta. Este é fulcral. Para além deste, recomendo, também, A Vingança da Geografia, de Robert Kaplan. Este incide muito no facto de a geografia ter conhecido tempos muito atribulados. Com o desenvolvimento das telecomunicações, pensou-se que tinha perdido a sua importância, mas a verdade é que, não só não perdeu importância como, de facto, continua a estar muito presente na explicação de fenómenos económicos, sociais, políticos e culturais. 

Uma personalidade que admira é…

O Professor Paul Claval. 

Três valores de um geógrafo…

Desembaraçado, culto e solidário. 

Geografia e Planeamento Regional numa frase…

O curso de GPR da NOVA FCSH tem de estar na linha da frente dos debates que interessam à comunidade nacional e internacional.