“O verdadeiro grande desafio para a Europa é o Pós-Covid!”

Num contexto de grande incerteza e mudança, voltamos a conversar com o Professor José Lúcio, pela pertinência de questões importantes para o futuro. O papel do Estado Social, eleições norte-americanas, liderança geoeconómica e geoestratégica mundial, ascensão da extrema-direita e Europa Pós-Covid!

Imediatamente após ao advento do novo coronavírus, assistimos (e continuamos a assistir), de forma muito generalizada, à tomada de medidas pelos governos centrais, destinadas à proteção dos sistemas sociais e económicos. Impuseram-se novas regras que suprimiram muitas liberdades individuais e o Estado adquiriu uma função preponderante no controlo da pandemia intra-fronteiras. Que mudanças se podem esperar, numa era pós-Covid, no que concerne ao papel do Estado Social? Reforçar-se-ão as suas competências e importância ou, por outro lado, assistir-se-á à suavização dos seus poderes, depois de um período de utilização mais intensa? Do ponto de vista dos cidadãos, o que pensa sobre uma mudança de perspetiva coletiva sobre o mesmo?

Eu creio que ainda não é muito claro o que vai emergir quando esta crise terminar. Os otimistas dizem que daqui a ano, ano e meio, entre uma vacina e um medicamento eficaz, a Covid-19 estará, essencialmente, controlada; os pessimistas dizem que poderá demorar mais tempo, pelo que ainda não é nítido o que pode acontecer. A própria duração do tempo com que as comunidades terão de viver com estas medidas tem impacto. Se a atual situação se mantiver um, dois, três anos, aí é lícito perguntar se voltaremos, de facto, ao “antes”. Será que voltaremos a ser um dos países dos “abraços e dos beijinhos” e de uma certa afetividade física?! É difícil de dizer! Há uma grande margem de incerteza. Este é o primeiro ponto assente.

Em segundo lugar, em relação ao Estado Social, temos de colocar, logo à partida, uma grande questão: como vão ser as finanças públicas no final de tudo isto?! Para manter um Estado Social são necessárias receitas, as quais dependem do andamento da economia e da forma como esta vai recuperar. Neste cenário, tem-se discutido que podem ser várias, as recuperações possíveis: situação em “L” (queda e depois manutenção na estagnação); situação em “U”(queda e depois recuperação mais lenta); o famoso e desejável “V” (a uma queda abrupta, segue-se uma recuperação rápida); ou uma situação em “W” (queda, começa a recuperação, nova queda abrupta, e nova recuperação). Discute-se muito se esta segunda vaga não poderá, no fundo, estagiar um andamento em “W”. Há uma estimativa que diz que, em princípio só em 2030 é que teremos o nível de rendimentos expectáveis, caso não tivesse surgido a pandemia. São dez anos de atraso. Em Portugal, os rendimentos estão estagnados desde 2000, o que significa que, no nosso caso, são mais vinte anos de atraso. Esta realidade é uma “machadada” muito forte nas atitudes de otimismo e esperança no futuro dos portugueses.

O Estado Social só é o que é, se houver receitas para o sustentar Saiu, por exemplo, uma notícia há poucos dias, que dizia que esta pandemia da Covid-19 está a alterar as estimativas de médio-longo prazo da sustentabilidade dos sistemas de segurança social. O aumento do desemprego e a queda do produto contribuem para a erosão da geração de receitas, é natural que o Estado Social possa sofrer um grande impacto e que o seu papel tenha de ser repensado. Com menos receitas, vai ser necessário fazer opções que são dolorosas e sensíveis. Em caso de quebra persistente das receitas disponíveis para o Estado Social, que funções é que vamos privilegiar?! O apoio aos idosos?! Os desempregados?! Os doentes?! Provavelmente, ter-se-ão de privilegiar opções muito difíceis e qualquer governo que ocupe, ou venha a ocupar a liderança do país, vai tentar adiar ao máximo a tomada dessas decisões. Num contexto de um país com rendimentos estagnados há muito tempo, um país envelhecido, um país um bocadinho descrente no crescimento, tudo isto contribui para a criação de uma situação que é muito difícil de gerir, e a qual não vão ser os “famosos” fundos europeus a alterar. Portanto, em suma, eu diria que o futuro papel do Estado Social pode passar por opções dolorosas, que vão exigir coragem e um compromisso social forte, uma vez que não é nada provável que este venha a dispor da mesma margem de manobra que tinha, do ponto de vista das receitas.

A “corrida” à vacina contra o SARS-CoV-2 e a pressão colocada no domínio médico – científico parece acentuar a competição pela liderança mundial. Por um lado, a suposta origem do vírus num mercado chinês e a falta de transparência do país asiático na atuação e revelação de informação relativa à evolução da pandemia, parecem ter enfraquecido a confiança no país; todavia, por outro, as atitudes de Donald Trump e a saída da OMS poderão ter debilitado a credibilidade da nação norte americana e suscitar dúvidas quanto à sua capacidade de liderança. Poderá esta  situação abrir caminho para o agudizar de tensões entre os dois países? Enfraquecer o poder dos EUA e acelerar a “tomada de posse” da China como líder do próximo “ciclo hegemónico”? Que mudanças pensa podermos esperar caso Joe Biden vença as próximas eleições norte-americanas?

Em primeiro lugar, é importante relembrar que a China está, nos últimos tempos, com a liderança do atual Presidente, o Xi JinPing, numa mudança de paradigma. Aqueles velhos princípios do Deng Xiaoping, que defendia uma China menos assertiva em termos internacionais, mais resguardada, está colocada em causa. Em segundo, tanto quanto conseguimos saber, a China parece estar já, neste momento, a sair da crise. Está a crescer, enquanto que os países ditos “seus rivais”, continuam com grandes dificuldades. Os últimos dados dizem-nos isso mesmo. Isto significa que, do ponto de vista da distribuição de riqueza mundial, o pêndulo vai-se deslocando para o oriente. Neste sentido, temos de perceber, por um lado, até onde é que a China quererá ir em termos de liderança e, por outro, qual será a resistência e oposição que os Estados Unidos poderão fazer. Aqui, queria, desde já, alertar para o seguinte: não irá haver nenhuma alteração de fundo se Joe Biden for o próximo Presidente dos EUA. Donald Trump tem uma nítida tomada de consciência em relação à fortíssima oposição geopolítica e geoeconómica da China e isso não vai sofrer alterações. O discurso de Biden em relação à China pode ser mais cordial, mas na prática, não haverá alterações de fundo. Nós temos uma visão sobre o atual presidente norte-americano muito ditada pelo “folclore”, pelo twitter e pelos “disparos” em muitas direções que o senhor diz, mas é preciso ter em conta, também, que algumas das suas políticas são uma continuação das da administração Obama, pelo que é normal que assim o continue a ser.

Até porque não creio que o país asiático esteja interessado em desempenhar um papel semelhante ao dos EUA, do género “polícia do mundo”; ninguém pode estar à espera disso. Para além disto, a China continua – e continuará – a ser vista como um ótimo parceiro comercial, mas não como um exemplo político a seguir. É uma ditadura, ponto final. Não tenhamos ilusões, o poder de atratividade que os EUA tradicionalmente têm, a China não tem, nem vai ter. Até porque isto é muito interessante, mas aqueles que criticam constantemente os EUA e que estão no mundo dito ocidental (seja o que isso puder ter ainda de significado, atualmente), não vão viver para Pequim, por exemplo; continuam a viver no mesmo sítio.

Significa isto que, é muito provável que a China assuma a liderança geoeconómica, mas não creio que, pelo menos nos próximos anos, assuma a liderança geoestratégica.  Esta hipótese é explicada por duas razões: em primeiro, porque a diferença, apesar de tudo, em termos de capacidade geoestratégica dos Estados Unidos e da China, continua a existir, e é muito grande (basta comparar o número de porta aviões das duas potências); e, por outro lado, porque, como dissemos anteriormente, a própria China não está interessada em ser “polícia do mundo”.

Voltando à questão da presidência norte-americana, uma questão em que são visíveis possíveis alterações com a entrada de Biden na Casa Branca – e esta relacionada connosco, europeus – é a questão do Brexit. O candidato do Partido Democrata já avisou o Reino Unido para não contar com grandes facilidades na celeridade de acordo comercial, como parece ter prometido Donald Trump ao atual primeiro-ministro britânico, Boris Johnson. Joe Biden é muito provável que tenha uma aproximação semelhante à de Barack Obama neste caso, algo que o próprio já mencionou. Até porque é bom lembrar que Biden é um orgulhoso irish-american que está a vigiar a questão da Irlanda com “olhos de falcão”, tendo já alertado que não vai aceitar acordo algum se entretanto a situação puder descambar e se perceber que os direitos dos irlandeses estiverem colocados em causa. É uma situação interessante, na qual eu creio que Biden vai ser mais duro connosco, europeus, do que o Trump. Mas de resto, qualquer ideia de que vamos “respirar um mundo novo”, é uma fantasia que não devemos alimentar. Infelizmente, isso corresponde a um defeito dos europeus, depositar esperanças na presidência norte-americana e tentar perceber se a situação pode reverter a nosso favor. Isso não pode continuar, não podemos depender tanto da Casa Branca.

Temos assistido ao crescimento contínuo dos movimentos populistas de extrema-direita um pouco por toda a Europa. Portugal não é excepção e discursos desta índole têm ganho uma força perigosa. Caso a atual situação governativa não consiga atuar da melhor forma neste cenário de pandemia (e inclusive, no pós-Covid), poderão partidos de extrema-direita (i.e. CHEGA) ganhar um grande avanço nas próximas eleições?

Tudo pode acontecer, depende da resposta dos ditos partidos tradicionais do centro. Não estou aqui para ser pessimista, mas volto a dizer que um país envelhecido, empobrecido e  estagnado pode ser mais sensível a discursos que tenham análises muito simples e que prometem dar respostas ao que é imediato. Eu já tenho dito isto e repito que, às vezes para se perceber o triunfo de discursos políticos como o do atual presidente norte-americano, é necessário avaliar a situação in loco. Entramos num avião, saímos de um aeroporto em Nova Iorque e em vez de ir para Manhattan – onde é tudo muito rico e dominam os serviços de elevado nível e que garantem elevadas remunerações médias – é rumar a norte, em direção ao Vale de Siracusa, e ver as fábricas e os armazéns fechados, pessoas que se arrastam na rua e que não têm grande esperança no futuro, a quem os habituais discursos políticos já não lhes diz nada. Como tal, nós também temos de pensar um bocadinho nisto. É preciso termos cuidado com as ilusões, porque o dinheiro que a UE nos transfere é finito e daqui a seis, sete anos, podemos estar numa situação em que continuamos cheios de problemas e vamos ter de pedir novos apoios. Isto vai obrigar-nos a pensar: se as lideranças políticas tradicionais, associadas ao arco da governação (partidos centro) falharam, e, ainda por cima, experimentamos uma outra solução e o país continua estagnado, para onde é que o eleitorado se vai virar?! É necessário ter isto em conta,  uma vez que, não é só lá fora, como se costuma dizer, que as pessoas “pensam com a carteira”. Não está escrito em lado nenhum que as pessoas tenham de ser fiéis a um partido político, isso não existe. Neste sentido, penso que, se daqui a três ou quatro anos, a situação continuar muito díficil, estagnada, depois de se tentar outra solução que, no fundo, continua um marasmo, tudo pode acontecer. O eleitorado vota de acordo com aquilo que vai vivendo e vai observando.

As reações a discursos como os do Chega são muito semelhantes às reações dos norte-americanos ao discurso do Trump, as quais contribuíram para que este se tornasse presidente. São de tal forma parecidas, que basta olhar para o crescimento das intenções de voto no partido CHEGA. A eleição de Donald Trump foi encarada pelos eleitores, como uma forma de experimentar algo que nunca tinha surgido; a atual situação governativa em Portugal – que já se percebeu que rebentou – também foi assim. O quê que aconteceu? O país continuou estagnado e a partir daí vamos ver o que vai acontecer.

A Europa tem sido um dos epicentros da pandemia. A progressão da Covid-19 permitiu, de facto, constatar a existência de uma União Europeia a várias velocidades e contribuiu para a exposição de fragilidades e desigualdades entre Estados Membros. Se já no período pré-pandémico era possível observar “fraturas no sistema”, o que podemos esperar do futuro da UE? Como será possível “suturar feridas” e impactos tão profundos? E que posição pode ocupar no sistema geopolítico mundial?

Eu creio que, até agora, não temos estado mal. A atual Comissão Europeia, sob comando da Ursula von der Leyen, tem manifestado um voluntarismo e preocupação com os desequilíbrios e, inclusive, estes grandes fundos que foram pensados para países como Portugal, vêm neste mesmo sentido. Aquando da crise de 2008, surgiu aquela questão de que “o norte trabalhava e o sul descansava”; neste caso, considero que isso não se tem passado. Quando olhamos para o mapa do “velho continente”, percebemos que não há oposição norte-sul ou este-oeste. A Bélgica tem uma situação dificílima, a Alemanha não está famosa, a Espanha, como sabemos, é um drama (e nós como portugueses, temos de seguir muito atentamente o que se está a passar em Espanha, como aviso), a República Checa até já fechou as escolas – norte, sul, este, oeste, esta questão da Covid irrompe em qualquer lado. Há uma certa “democratização do drama”. O vírus não olha às finanças de ninguém e, portanto, os líderes europeus até têm mantido uma boa postura. Eu penso que o verdadeiro grande desafio para a Europa é o pós-Covid. As nações vão recuperar de formas diferentes e será necessário avaliar os estragos e perceber que tipo de solidariedade poderá existir entre os Estados. Eu quero ser otimista e acreditar que vai existir, de facto, uma solidariedade forte.

Para além disto, é ainda necessário pensar que, dentro de cada Estado, é possível que as regiões recuperem de formas diferentes. Uma recuperação nacional em “V”, pode ocultar outros tipos de recuperações regionais. Significa isto que, até a própria política interna de solidariedade e coesão territorial, irá deparar-se com grandes desafios, aos quais temos de estar particularmente atentos. Uma região que esteja próxima de outra que recuperou rapidamente tem, à partida, maiores hipóteses de recuperar mais depressa, também. É a geografia a atuar. Outro aspeto a considerar é a forte dependência de uma única atividade económica. Por exemplo, as regiões que dependiam muito do turismo, é possível que tenham performances económicas, nos próximos tempos, muito fracas. No caso português, o Algarve e a Madeira estavam muito dependentes do turismo externo, das viagens, e isto teve um impacto tremendo. Eu diria que se se mantiver este padrão forte de restrições a viagens, estas regiões vão viver uma situação considerada muito dramática.

Em relação ao posicionamento da Europa no sistema geopolítico, o nosso papel em termos das relações internacionais, uma vez mais, o que eu referi sobre os Estados Unidos, também se aplica aqui. A UE para ter esta presença e esta força precisa de ter receitas, e se a economia estagna, se as receitas são menores, isso também vai condicionar a nossa ação. Não podemos ser otimistas ao ponto de pensar que a Europa será vista como uma espécie de referência. Somos um continente interessante, com laços estabelecidos com várias partes do mundo, um produto interno que ainda é enorme, uma participação no mercado mundial que é importante, mas a nossa afirmação, também depende de políticas concretas, de acordos comerciais e de cooperação económica. Não temos nenhum atestado de preferência só porque somos europeus. Se a questão da China e dos EUA é uma oportunidade para nós, eu diria que sim, mas temos de ter em conta que a economia norte americana, por exemplo, tem mostrado uma capacidade de adaptação a novos tempos que é impressionante. Continua a ser fortemente atrativa, uma referência e, por isso, não tenhamos ilusões de que a União Europeia pode surgir como uma espécie de “terceira via iluminada”. Não será esse o caso, até porque a Europa vive atualmente divisões importantes, em termos de leste-oeste; não somos um bloco completamente coeso, que queira “marchar” todo no mesmo sentido, com a mesma dedicação. Por exemplo, enquanto que para Portugal, sendo um país atlântico, a questão geoestratégica dos EUA é óbvia, para uma República Checa, as grandes variáveis a que se atende já não são as mesmas; a Rússia está muito mais próxima. São muitos os problemas e desafios a que temos fechado os olhos, mas que vamos ter de enfrentar em breve, na minha opinião. 

Em termos de mosaico global, eu penso que teremos um “Mundo G2” (sendo o G1, os EUA, e o G2, a China). Nós, União Europeia, não seremos um G3, quase de certeza. É um sonho que acabou, especialmente depois da saída do Reino Unido, que reduziu de forma drástica a nossa capacidade geoestratégica. Acredito que possamos ser, talvez, uma plataforma de ligação entre o G1 e o G2; esse pode ser o nosso futuro.

Entrevista: Ana Mendes