“O maior desafio da sustentabilidade é a coerência!”

Leciona as unidades curriculares de  “Desenvolvimento Sustentável” e “Dinâmicas do Espaço Rural”, da licenciatura de GPR. Muito ligada às questões ecológicas, é uma acérrima defensora dos modos de produção alternativos e de novas formas de organização social. Estivemos à conversa com a docente Ana Firmino, numa entrevista centrada na sustentabilidade ambiental

(Geolearning) – Vivemos, atualmente, numa sociedade que se diz empenhar no caminho para a designada “sustentabilidade”. Somos todos os dias confrontados com soluções mais “verdes” que dizemos adotar, mas nem sempre esta realidade corresponde à verdade. Porquê que considera ser tão difícil para nós, enquanto seres humanos, começar verdadeiramente esta mudança? Porquê que continuamos a insistir neste dualismo?

(Prof. Ana Firmino) –  É uma pergunta com uma resposta complexa. É que não é fácil mudar. Só de falar em mudança, há pessoas que ficam logo a tremer, porque se sentem inseguras. E isso é compreensível. Isto não é uma crítica, é uma constatação. O que temos de fazer é ir ao encontro dos medos dessas pessoas. Por exemplo, na minha juventude, entusiasmada com a agricultura biológica, secalhar, em muitas das vezes que abordei o tema, entrei “muito a matar” com a questão.e em vez de cativar as pessoas para a causa, afastava-as, porque as assustava. Hoje reconheço que errei e que tinha muito a aprender na altura (e ainda hoje tenho) Até agora, com os alunos no âmbito, por exemplo, da cadeira de Desenvolvimento Sustentável, eu aprendi isso. Não vale a pena impor-vos este modelo como sendo a salvação do mundo. Aliás, eu digo-vos isto durante a aula: vocês têm de sentir a necessidade; têm de fazer uma análise introspectiva de vocês próprios e perceber isso mesmo. É por isso que isto não é fácil de conseguir; porque eu penso que a solução não vem de fora, a solução tem de vir de dentro. Cada um de nós tem de concluir que é necessário mudar, que é necessário proteger o ambiente. Se não o sentirmos, não vale a pena insistir, porque havemos de estar sempre a procurar formas de contornar as regras e a legislação que nos impõem. Se todos o sentíssemos, nem era necessário, por exemplo, existir a cadeira de Desenvolvimento Sustentável. Aliás, se isto for bem sucedido, de futuro, não fará sentido continuar com a cadeira, uma vez que essa sustentabilidade já está assimilada, pelo menos pela maioria dos cidadãos. Mas quando a própria sociedade nos transmite mensagens contraditórias e altamente penalizantes para o ambiente, então temos de continuar. Por exemplo, esta questão da construção do aeroporto no Montijo, é altamente contraditória. Por um lado, queremos (Portugal) reduzir as emissões, por outro, queremos aumentar o fluxo de aviões aqui, na área de Lisboa. Eu já nem estou a pôr como problema principal a sua localização. Seja onde for, desde que atravesse o território nacional, é um problema, porque é mais uma emissão de dióxido de carbono que temos de neutralizar. E só o facto de haver este encarniçamento todo para fazer avançar o aeroporto custe o que custar, demonstra a contradição na política. E é, por isso, também que, por vezes, não podemos pedir ao cidadão muito mais, quando o próprio Estado (e não é só o nosso, estão todos nesta onda do crescimento, de atrair mais turistas) não adota um modelo consentâneo com os princípios da sustentabilidade. É evidente que nós podemos tentar passar junto dos jovens estes princípios, sobretudo sensibilizando-vos para a necessidade de vocês próprios se precaverem em relação ao vosso futuro. É isto que eu tento fazer. Só isso, mais nada. O trabalho tem de ser vosso, não sou eu que vou conseguir que vocês assimilem isso. Eu posso ser, num aspeto ou outro, o elemento desencadeador desse processo de consciência, mas não posso fazer mais do que isso e nem é algo que eu possa controlar. Ele às vezes aparece quando eu própria menos espero. Ou porque disse uma palavra que fez timbrar qualquer coisa na vossa mente, ou porque dei um exemplo muito em concreto que vos despertou o coração. Sem eu querer, consegui chegar ao vosso ser mais íntimo. Mas é uma coisa que eu faço sem estar programada, e com uns alunos funciona, com outros não. E mais, isto é quase uma bomba retardatária, porque já com a agricultura biológica, por exemplo, eu tive essa experiência. Ao fim de dez anos ou  mais, eu tenho alunos que nunca ligaram muito ao que lhes transmiti durante as aulas, e que vêm, então, ter comigo porque se começaram a interessar pela questão, por uma razão ou outra. Portanto, é o que eu costumo dizer: eu espero que esteja a deixar por aí algumas sementes úteis para o futuro, mas quando é que elas vão germinar, não sei. Algumas, secalhar, vão ser estéreis toda a vida. (Risos) 

Este dualismo está também, muitas vezes, implícito quando juntamos os conceitos “crescimento” e “desenvolvimento sustentável”…

Está nas nossas mãos modelar o crescimento de uma forma sustentável. Não é totalmente verdade que não possa existir crescimento no desenvolvimento sustentável; ele não pode ser é exponencial e ultrapassar o próprio recurso. Tomemos como exemplo – embora também tenha impactos negativos – a produção fotovoltaica.  Para que toda a gente esteja abastecida e a produzir neste modo, é necessário um crescimento do setor, pelo menos até que isto aconteça. Portanto, há sempre formas de crescimento. Não pode é ser entendido da forma como a sociedade atual o faz, criando necessidades e forçando consumos. É que hoje, para manter o consumo, inventa-se tudo. É o dia de São Valentim, é o Dia das Bruxas, o dia disto, o dia daquilo, é o Black Friday, há sempre qualquer coisa. Quer dizer, por um lado, fala-se da necessidade de reduzir os consumos e, por outro, está-se, constantemente, a criar novos aliciantes para que as pessoas desatem a correr loja adentro, para comprar indiscriminadamente, coisas que, muito provavelmente, não lhes fazem falta absolutamente nenhuma.

   

É uma acérrima defensora da agricultura biológica. Portugal tem avançado muito lentamente nesta área, tanto pela ineficácia das políticas públicas, como pela mudança de mentalidade dos consumidores. O quê que considera que mais tem “atrasado” esta mudança e que se pode constituir como ponto de viragem fulcral? Quando é que pensa que esse momento vai chegar?

Há uma coisa que eu não defendo, que são os subsídios. E, muitas vezes, o avanço só se consegue porque há um subsídio, tornando-se difícil distinguir quem é que está na agricultura biológica de coração, de quem está por interesse (porque recebe muito mais por estar na biológica do que na convencional). Por outro lado, o mercado está cada vez mais recetivo aos produtos biológicos, também porque houve, entretanto, umas grandes campanhas de esclarecimento. Eu recordo-me que introduzi as matérias relacionadas com a agricultura biológica aqui, na faculdade, no curso de GPR, em 1987, na sequência de uma Pós- Graduação que fiz na Holanda. Quando comecei, era criticada e não consegui ninguém que orientasse a minha tese nesta área. É só para vocês verem o quanto se evoluiu em termos de aceitação do produto. Hoje em dia, até as grandes superfícies estão cada vez mais interessadas nos biológicos. E, portanto, eu penso que, até pelas estatísticas em geral, no mundo, que o biológico faz todo o sentido. É que as pessoas, secalhar, a pouco e pouco, acabam até por não ter alternativa, uma vez que, por via dos incentivos fiscais/subsídios, ou por via de outra regulamentação mais estrita em termos ambientais, essa mudança vai ter de ser feita.  E, claro, para além disto, o cidadão comum também está mais atento e mais consciente, tornando-se a preferência pela agricultura biológica, uma consequência lógica. Trata apenas de ser-se consequente. Por isso é que eu nas aulas vos digo que, para mim, o maior desafio da sustentabilidade é sermos coerentes. E isto não é nada fácil. Mas se a pessoa tentar ser coerente, automaticamente, começa a pensar na forma como foi produzido um certo produto – que químicos é que foram usados, se a mão da obra foi escravizada, e afins. É apenas uma consequência lógica; é apenas ser-se coerente na sua linha de pensamento, e tentar transferir isso para o seu comportamento quotidiano. Mas é difícil, especialmente porque o próprio mercado nos obriga a comprar mais e de forma mais compulsiva, sem pensarmos. E o mercado não está habituado a este tipo de coerência/comportamento, mas vai começando a pouco e pouco. 

Qual é a sua perspetiva/posição na luta contra as alterações climáticas? (é positiva ou negativa?) Considera que o ser humano conseguirá assegurar a sua sobrevivência ou que vamos “perder esta luta”?

Eu não posso prever como é que isto vai evoluir, e muitas vezes sou positiva e outras negativa. Apesar de tudo, eu penso que irá morrer muita gente. E isto já está a acontecer. Agora, até que ponto é que nós vamos conseguir controlar essa situação, é difícil prever. Há quem defenda que o mundo como existe hoje, já existiu há milhares de anos, e que acabou por desaparecer, porque a Humanidade não soube, na altura, gerir bem os seus recursos (como por exemplo como o que aconteceu com a Ilha da Páscoa). E, no entanto, se assim foi, houve a capacidade – e indo ao encontro do Sir. James Lovelock, com as “Eras de Gaia” – mesmo com o desaparecimento do ser humano, o planeta sobrevive (personificado na Gaia). E eu penso que essa teoria faz todo o sentido e é possível que isto aconteça. Voltar tudo ao princípio. Esta teoria não me repugna. Portanto, resumindo, penso que, em relação a isto tudo, a “Gaia” sairá vencedora; o planeta sobreviverá sempre, o ser humano é que não sabemos. 

Que aspeto pensa ter maior importância no reverso da mudança climática e que está a ser descurado e esquecido, tanto pela esfera política, como pela sociedade civil – indivíduos?

Basicamente, as alterações climáticas são resultado da ação humana, embora possam existir fatores naturais a contribuir para isso. Por isso, está nas nossas mãos, pelo menos, tentar reduzir a velocidade destas mudanças. Isto leva-nos de volta àquela tomada de consciência individual. Eu penso que isso é o básico, porque, por exemplo, quando vocês fazem o cálculo da pegada ecológica, tomam consciência de quais são as áreas que têm de melhorar. Basta ficarem por aí, a trabalhar isso. Por exemplo, eu sempre que faço o meu cálculo, o fator que mais pesa negativamente, são as viagens de avião que faço, essencialmente, em trabalho. E agora cada vez faço menos. Para quê que havemos de fazer tantas viagens?! Ainda agora recentemente o nosso Primeiro Ministro, devido ao Coronavírus, fez uma reunião via video-chamada, em vez de se deslocar ao local. Porquê que não se faz isso mais vezes?! O tempo que se perde, o risco e a pegada carbónica das viagens, é muito elevada. O que não quer dizer que nós de vez em quando não possamos fazer uma viagem de avião, especialmente a um país mais distante e inacessível por comboio, como por exemplo a Nova Zelândia, a Austrália, ou qualquer coisa do género. Não quer dizer que não se possa fazer, mas não com a facilidade com que hoje se faz.  Isso é incomportável, pelo menos enquanto não existirem outro tipo de aviões, com outras alternativas. É verdade que agora até podemos compensar as emissões das nossas viagens, e isso mitiga um bocadinho os impactos, mas não resolve o problema. 

Em termos de unidades curriculares relacionadas com o espaço rural, pensa existir uma lacuna na NOVA FCSH? Fazem falta mais cadeiras destas?

Fazem muito. Há turmas onde eu reparo, por exemplo, que a maioria ou até totalidade dos alunos, não percebe nada de espaço rural. E isso é muito grave, porque mais de 80% do território nacional é rural. Esse é um depósito, no fundo, dos recursos que nos podem trazer a sustentabilidade e a qualidade de vida tão desejadas. E se esses mesmos alunos não conhecem,  não percebem nada, pelo menos, daquilo que são as características essenciais do espaço rural, então, isso é algo muito grave. Portanto, sim, faltam muitas cadeiras relacionadas ao espaço rural. Aliás, estas aprendizagens até podiam ser incluídas noutras unidades curriculares, mas esta das “Dinâmicas em Espaço Rural”, se algum dia quiserem acabar com ela, é, então, dar a “machadada final” naquilo que é a única oportunidade que temos de passar alguma informação a esses alunos. 

Dois livros que recomenda…

Há vários livros que me marcaram, mas alguns deles precisamente porque chamaram à atenção para os problemas que estamos a viver hoje, numa altura em que ninguém refletia sobre o assunto. Um deles é o “Relatório de Tirussine”, do Gonçalo Ribeiro Telles, de 1951. É fantástica a visão que o senhor já na altura tinha. Foi uma obra que marcou muito na altura em que eu estava a tirar o Doutoramento. Mais recente, as obras de Rob Hopkins, como “From What is to What If”, mas especialmente com “Transitions Towns”. Há vários trabalhos hoje em dia que acho que é pena as pessoas não darem mais atenção. 

Uma personalidade que admira…

Dalai Lama, gostava muito de falar com ele.

Dois projetos da sociedade civil que estejam a fazer realmente a diferença e que não têm o reconhecimento merecido…

Agricultura social e vários projetos de permacultura e agricultura regenerativa. Projetos nesse âmbito de modelos de produção sustentáveis, por exemplo. Agora, finalmente, a agricultura biológica já começa a ser reconhecida, mas estes modelos ainda são desconhecidos.

Três palavras que definam, verdadeiramente, a sustentabilidade…

Ética, amor, e solidariedade!