“Com a pandemia, a situação humanitária nas fronteiras ocidentais da Turquia e na Grécia, corre o risco de assumir um nível catastrófico!”

A pandemia do novo Coronavírus e a situação dos refugiados na fronteira entre a Turquia e a Grécia, as migrações ambientais, e ainda o contributo da Geografia no futuro. A docente Dulce Pimentel, em entrevista à Geolearning! 

 

A chegada em força do Covid-19 à Europa coincidiu com a decisão tomada por Erdogan, de abrir as fronteiras turcas à passagem dos migrantes sírios para território europeu. Numa altura em que a UE tem os seus esforços concentrados no combate ao vírus, de que forma é que esta situação se pode desenrolar? Que custos humanitários estão implicados e qual poderá ser a forma de atuação da UE? 

É uma questão complexa. É verdade, a atual crise sanitária surge numa altura em que a situação migratória vivida na fronteira com a Turquia estava já bastante tensa, o que coloca a Europa num centro de um turbilhão do qual é difícil descortinar saídas. Nas últimas semanas, o governo da Turquia, como sabemos, ameaçou abrir as suas fronteiras, pretendendo facilitar, assim, a deslocação de refugiados imigrantes sírios e de outras nacionalidades, para junto das fronteiras com a Grécia e a Bulgária, que estavam encerradas. Esta “ameaça” foi sentida e apelidada na Europa como chantagem, e teve precisamente essa finalidade, de pressionar a União Europeia a aumentar o financiamento à Turquia, ao abrigo do acordo firmado em 2016. Mas terá, também, um outro efeito, que é o de desencadear novos fluxos migratórios numa região onde a guerra continua (cerca de um milhão de sírios em fuga de Idilb, no noroeste da Síria, após os bombardeamentos das últimas semanas) e a instabilidade e múltiplas carências marcam o quotidiano de milhares de pessoas. Isto porque, quando surge a notícia de que há uma possibilidade de passagem, essa informação chega a outros lugares. Por exemplo, no Afeganistão, há seguramente famílias que já têm alguns dos seus membros do lado europeu e que tentarão, também, chegar aqui. E quem fala do Afeganistão, fala de outros países na região. Há um efeito multiplicador, no sentido de desencadear um incremento dos fluxos migratórios. Lembremos, também, que a Turquia é o país com o maior número de refugiados no mundo. Estamos a falar de qualquer coisa como 4 milhões de pessoas, dos quais 3,6 milhões são sírios, e que muitos migrantes e refugiados de outras nacionalidades, como acabei de dizer, utilizam a Turquia para chegar à Europa. Isto é importante para perceber a dimensão que tem a Turquia e a relação nada fácil com um vizinho desta natureza. Pensando naquilo que vivemos atualmente, de facto a situação humanitária, já por si só, muito complicada nas fronteiras ocidentais da Turquia e da Grécia, corre o risco de assumir um nível catastrófico. É um efeito “rastilho”. Podemos estar perante a possibilidade de milhares de vítimas, com a pandemia do coronavírus a grassar nos campos de refugiados. Disso mesmo dava conta o jornal britânico The Guardian, esta manhã (24 março), chamando a atenção precisamente para o facto da União Europeia ter de evacuar 42 mil requerentes de asilo que estão nas ilhas gregas, de forma a prevenir muitos mortos pela Covid-19 nestes campos. O momento é delicado, já seria sem a pandemia e por isso as instituições europeias têm aqui um papel fundamental. Cabe-lhes, e aos seus líderes, atuar de forma a concertar esforços e acionar mecanismos que a UE já dispõe, e outros que possam vir a ser reforçados. Isto, porque este não é um problema da Grécia, da mesma forma que a Covid-19 não é um problema de Itália, de Espanha, Alemanha ou do Reino Unido. A coordenação e a capacidade de liderança são imprescindíveis, mais ainda em momentos de crise como este. Isto parece um apelo ao bom senso. De facto, não há receitas, não há soluções milagre, mas sem uma boa coordenação, sem boa capacidade de liderança, isto não vai funcionar e os resultados acabarão por ser aqueles que não desejamos. 

A Europa é, neste momento, o centro da pandemia do novo Coronavírus. Entram, agora, muitas vezes em discussão, questões relacionadas com a estrutura etária da população europeia. A Itália é o país mais afetado e, também, onde se registam um dos maiores níveis de envelhecimento. De que forma é que esta e outras pandemias futuras podem obrigar a alterar a forma como fazemos projeções sobre a evolução da população? Como é que os modelos terão de evoluir para prever impactos futuros, especialmente nas classes etárias mais velhas?

Um dos aspetos que parece caracterizar esta pandemia é precisamente o seu grau de incerteza. Não sabemos quanto tempo vai demorar, nem a sua prevalência. No entanto, do que se conhece, nomeadamente nos países que oferecem maior confiança do ponto de vista estatístico, existem grupos de risco bem identificados e é possível estabelecer níveis de mortalidade segundo os grupos etários. As projeções de população trabalham com hipóteses que têm em conta as tendências passadas, e como esta situação é nova (sem precedentes na história das pandemias), vai ser necessário analisar bem os dados. É fundamental obter dados confiáveis e perceber de que forma podem vir a ser introduzidos nas projeções e na calibração dos modelos. Isto não se faz com dados pontuais ou com informação conjuntural. É preciso ter uma análise mais duradoura no tempo, para que possamos vir a introduzir essa informações nos modelos. E claro, temos de ter em conta que projeções não são previsões e que, portanto, vamos trabalhar sempre com cenários. 

Se conseguirmos conter esta pandemia num tempo não muito longo, até porque dispomos hoje de meios que não existiam quando se verificaram outras pandemias que provocaram grande mortandade, é possível que os seus efeitos sobre a esperança de vida das populações sejam menos significativos. Lembro a este propósito o trabalho pioneiro de Philippe Ariès, de 1946 sobre a história das populações francesas e a sua atitude perante a vida (ele centra-se muito na questão da mortalidade e de como condicionou a evolução da população em França). E, mais recentemente, os livros do geógrafo norte-americano Jared Diamond, Armas, Germes e Aço, publicado no final dos anos 90 (fala precisamente de como é que os vírus e doenças foram levados da Europa e acabaram por exterminar outras populações) e Colapso, de 2008 (discutia porque algumas nações desaparecem enquanto outras manifestam uma grande capacidade de resiliência e têm êxito). Mas, apesar de tudo, ao contrário do que aconteceu nessas épocas, nós hoje temos outras ferramentas, outros mecanismos para poder combater este vírus do ponto de vista médico. Portanto, como disse, se o conseguirmos fazer, é possível que os efeitos desta pandemia sobre a esperança de vida das populações em termos globais, sejam menos significativos. Se estivermos perante uma situação que, conjunturalmente, provocou um aumento da mortalidade que afetou determinados grupos, isso não virá a interferir nos ganhos substanciais na esperança média de vida das populações e não será um fator muito perturbador dos parâmetros que vamos introduzir nos modelos.

Esta pandemia tem tirado, por momentos, a nossa atenção do grande desafio que são as alterações climáticas. Também aqui, surgirão novos desafios relacionados com a migração de populações. Atualmente, embora não haja consenso quanto à terminologia a aplicar, a comunidade internacional tem certezas acerca do aumento dos movimentos populacionais relacionados com as questões ambientais. Quais pensa serem as futuras grandes rotas de “migração ambiental” e que características é que estes fluxos podem adquirir? Onde é mais provável que se origem e em direção a que destinos? Estará a comunidade internacional à altura da resolução do problema?

As estimativas acerca do número de migrantes e deslocados ambientais apresentam uma grande amplitude de valores –  podem oscilar entre 15 milhões, 30 milhões, 45 milhões, e num horizonte de três, quatro décadas, chegar aos 100 milhões ou mais. Todavia, apesar desta diversidade toda de números que às vezes, pode suscitar alguma desconfiança, digamos assim, uma certeza que temos é que esse número irá aumentar nas próximas décadas e segundo as previsões da OIM (Organização Internacional para as Migrações), esse número deverá mesmo duplicar. As Nações Unidas estimaram que, em 2018, teria sido cerca de 17 milhões, o número de pessoas que migrou por causas relacionadas com desastres naturais (erupções, sismos, ciclones, inundações), mas também com a subida do nível médio do mar, com a perda do solo para a atividade agrícola (desertificação), perda de áreas de pesca, etc. As migrações – sejam internas ou internacionais – surgem como resposta às alterações provocadas no habitat por estes fenómenos a que estivemos a fazer referência e que vão impedir a continuação das atividades e formas de vida das populações. Ou seja, a migração está – e vai continuar a ser –  usada como estratégia de adaptação às mudanças ambientais. E, como sabemos, a mobilidade humana tem impactos nos territórios e nas sociedades de origem e de destino. Quanto às rotas, a OIM tem, desde 2015, identificados os principais hotspot, ou seja as áreas de maior vulnerabilidade ambiental à escala regional (grandes regiões do mundo), onde já se verificam e, muito provavelmente, irão intensificar-se este tipo de migrações. As ilhas do Pacífico são das mais ameaçadas pela subida das águas do mar e também aquelas em em que os habitantes têm vindo a antecipar movimentos migratórios. A Indonésia e as Caraíbas são outros exemplos, mas, por outro lado, a escassez de água e a desertificação vão atingir áreas densamente povoadas na África Ocidental e Oriental, no nordeste do Brasil e também na bacia do Mediterrâneo (no sul da Península Ibérica, áreas da Grécia e também norte de África). As viagens de estudo a Marrocos, que realizámos no DGPR nos últimos anos, têm-nos permitido observar isso mesmo. Contudo, ao contrário do que se pensa, a maior parte dos chamados “migrantes ambientais”, são deslocados internos, não são migrantes internacionais. Mas, à medida que as condições de sobrevivência se vão degradando na suas regiões, é expectável que decidam partir e que seja mais frequente a passagem de uma fronteira de outro país. E porque a geografia conta, os destinos começam por ser maioritariamente os países vizinhos. O que também já sabemos é que as alterações climáticas afetam principalmente os mais pobres e esses têm, regra geral, menos oportunidade de partir. Há uma desigualdade na oportunidade de escapar a condições de vida muito difíceis e de procurar outros destinos. 

Quanto à resposta da comunidade internacional, há uma divergência de posições que acabam por retardar uma resposta conjunta, e sabemos o quão necessário é conjugar esforços a este nível, para mitigar e encontrar soluções de adaptação à situação de emergência climática que vivemos. Isso não parece suscitar dúvidas à maioria das pessoas e a evidência científica está aí. Estamos preparados? Provavelmente não, não estamos. Estamos alerta, devemos estar alerta e conscientes de que é assim que devemos agir, mas o que acontece muitas vezes, e também neste caso é que interesses diferentes se sobrepõem. Atualmente, estamos a viver uma situação completamente extraordinária e não podemos olhar primeiro para economia e só depois para a saúde. As questões da saúde estão primeiro, e neste momento todos os esforços estão concentrados aí, mas os outros problemas mantêm-se, eles apenas estão à espera que lhes seja dada a devida atenção e isso vai ter de acontecer.

Face a todos estes e outros múltiplos desafios que estamos e vamos viver (envelhecimento populacional da Europa, crescimento da população mundial, migrações ambientais, entre outros), num futuro imediato e não imediato, de que forma é que a Geografia, e muito em particular a Geografia Humana, podem contribuir ainda mais? Enquanto geógrafos, que mais poderemos fazer?

A Geografia é uma ciência antiga, que estuda e está atenta à evolução dos fenómenos e aos seus impactos nos territórios. A sua formação permite aos geógrafos uma leitura integradora (dos espaços e dos fenómenos a diferentes escalas) e daí um papel de maior intervenção quando as decisões exigem abordagens holísticas face à complexidade dos problemas. Diria que os contributos, que felizmente têm tido maior visibilidade em diversos domínios das sociedades (também em Portugal) exigem, por um lado, a solidez da formação e procurar intensificar a utilização do saber e do saber fazer dos geógrafos. São hoje diversas as formas de participação dos geógrafos para além da esfera académica. O desafio de utilização de massas significativas de dados com recurso a novas tecnologias (por exemplo o rastreio dos telemóveis que permite identificar a nossa localização e como nos movemos, etc). Há que prosseguir essa atuação para responder de forma adequada aos desafios do mundo contemporâneo. 

Dois livros que recomenda…

No domínio das migrações recomendo o clássico The Age of Migration (Stephen Castles, Hein de Haas e Mark Miller), um livro que tem vindo a ser atualizado em sucessivas reedições e que dá uma perspectiva global das migrações internacionais, com vários exemplos à escala regional, e a utilização de muitos dados estatísticos e mapas. É um bom livro para iniciar os estudos sobre as migrações e que continua a ser um clássico a revisitar. A segunda recomendação é de um livro que ainda estou a ler, que se chama Teoria da Viagem. Uma poética da Geografia, de Michel Onfray, um filósofo francês que faz neste pequeno livro um elogio à arte de viajar.

Nesta fase em que nos pedem que fiquemos em casa, a leitura deste livro pode ajudar a compreender o que nos impele a viajar, o desejo de viajar, o que descobrimos nas viagens e, quem sabe, começar a preparar, quando nos for possível, uma próxima viagem. 

Uma personalidade que admira…

Raquel Soeiro de Brito, pelo pioneirismo e pela visão. Integrou o grupo de professores que fundou a Universidade Nova de Lisboa, e a ela devemos a criação do DGPR e do curso de licenciatura em Geografia e Planeamento Regional com um plano de estudos inovador em relação aos restantes cursos de Geografia que existiam em Portugal.

É uma das primeiras mulheres doutoradas em Portugal, a primeira em Geografia, e que teve numa altura difícil, no final dos anos 70, a visão e a energia para criar a Geografia da NOVA. Mas a admiração vem também do exemplo de geógrafa de campo, da escrita fluída e pela forma como fixou em fotografia (uma das suas paixões) as paisagens portuguesas e de muitos outros lugares do mundo, sobretudo de lugares onde se fala português.

Um desejo para o futuro da geografia…

Que os avanços tecnológicos e a oportunidade que é criada pelo acesso a novos dados (big data) sejam bem aproveitados, valorizando a prática do geógrafo e o seu contributo para conhecer mais e agir melhor. A Geografia serve para aproximar povos e para melhorar a vida das pessoas. É para isso que trabalhamos e eu acho que o futuro só pode ser risonho.    

 

Entrevista por: Ana Mendes